No Brasil, uma sensação amarga tem se tornado cada vez mais comum para cidadãos e empresas que buscam o Judiciário para resolver seus conflitos: a de "ganhar, mas não levar". Após anos de uma verdadeira batalha processual, com audiências, recursos, despesas e uma longa espera, a sentença favorável chega. O direito é reconhecido, a justiça é declarada no papel. Mas, na prática, nada acontece. O devedor não paga, o bem não é devolvido, e a decisão judicial se transforma em um quadro na parede, desprovido de efeito real. Esse é o problema da ineficácia da fase de execução.
Para entender essa dinâmica, é preciso saber que um processo cível se divide em duas grandes fases.
A primeira é o "processo de conhecimento", momento em que o juiz toma conhecimento do que cada parte tem a dizer sobre o conflito, analisa as provas e, ao final, diz o direito aplicável e decide quem tem razão. Daí vem o nome jurisdição, do latim ius dicere ou iurisdictio, que significa justamente dizer o direito [1]. É nessa fase ou processo que o direito é "conhecido" e declarado. Uma vez que o juiz “diz o direito” – ou quando o credor possui um documento que permite pular essa fase (título executivo) –, inicia-se a segunda fase: o "processo de execução". É nesta etapa, possível quando a obrigação a ser cobrada já é certa, líquida e exigível, que aquilo que foi reconhecido é efetivamente perseguido com o auxílio do Estado-Juiz por meio de medidas executórias como a penhora dos bens e direitos do devedor, bloqueio de suas contas bancárias, quebra de sigilo fiscal e outras medidas possíveis.
A fase de execução é a que concretiza todo o processo civil. No Brasil, o grande problema é que muitas vezes acontece aquela famosa situação conhecida popularmente como ‘ganhou, mas não levou’. Há muitos cidadãos e empresas que vencem processos, mas no momento da cobrança da outra parte acabam não tendo o ressarcimento. São processos nos quais a parte vencedora não consegue receber seu direito porque a execução não é efetiva.
Então, é no processo de execução que o nosso sistema de justiça revela suas maiores fragilidades, transformando-se em um labirinto burocrático que, muitas vezes, beneficia o devedor profissional – aquele que utiliza as brechas da lei, a morosidade do Judiciário, a dificuldade e custo para se fazer uma investigação patrimonial e os riscos processuais que existem contra o credor para ocultar seu patrimônio e se esquivar de suas obrigações.
Vamos explorar algumas causas desse problema multifacetado.
POSSIBILIDADES DE MELHORIA NA CONDUÇÃO DOS PROCESSOS
O sistema judicial atual, em grande parte, ainda opera com uma mentalidade analógica em um mundo digital. Procedimentos que poderiam ser simples e automatizados, como intimações e citações, ou levantamento de valores, ainda dependem de uma série de etapas manuais e demoradas, dando ao fraudador tempo para tomar providências para frustrar as medidas executórias que estão sendo intentadas. Essas tarefas simples podem levar meses a depender da Vara em que o processo tramita, um "tempo morto" que corrói a confiança do cidadão na Justiça.
Mas, se o diagnóstico é claro, quais seriam os caminhos para a solução? A resposta passa, invariavelmente, pela modernização e pela tecnologia. Não é mais aceitável que, em pleno século XXI, as comunicações processuais ainda dependam de métodos ultrapassados. A utilização de ferramentas como WhatsApp e outras redes sociais para citações e intimações, com algumas adaptações para acontecer de forma regulamentada e segura, traria uma agilidade imensa aos processos.
Por exemplo, seria efetivo, mediante regulamentação adequada, estabelecer convênios dos tribunais com as principais plataformas digitais, como a Meta, proprietária do Facebook, Instagram e WhatsApp, ou com o LinkedIn, TikTok ou X, para publicização de algumas decisões e realização de intimações e citações que chegassem diretamente no WhatsApp ou outras mídias sociais da pessoa interessada. Tal iniciativa, implementada de forma gradual e com salvaguardas apropriadas, poderia revolucionar a comunicação processual, garantindo maior efetividade na localização das partes enquanto preserva os direitos fundamentais e a segurança jurídica dos procedimentos.
Outra ideia seria a criação de um portal governamental unificado, de cadastro obrigatório para todos os cidadãos e empresas, que poderia também centralizar as comunicações oficiais e acabaria com a dificuldade de localizar as partes. Ter um meio digital centralizado (hub) para acessar e abrir uma citação ou intimação poderia ser muito mais efetivo do que é realizado atualmente.
Até o presente momento, por enquanto, é preciso ainda que a comunicação se dê por carta, ou por um edital que é publicado no mural físico do fórum e em um site da Justiça que ninguém acessa, ou ainda, em alguns casos, é necessário que um oficial de justiça fique tentando insistentemente localizar uma pessoa que está se ocultando para não receber aquela intimação. O comportamento de algumas pessoas que se ocultam para não serem citadas ou intimadas nos processos toma muito tempo de todos os envolvidos e poderia ser solucionado com um uso mais efetivo da tecnologia e das ferramentas hoje disponíveis.
REFORMAS LEGISLATIVAS PODEM CONTRIBUIR PARA A SOLUÇÃO DO PROBLEMA
Uma reforma legislativa no Código de Processo Civil também contribuiria para a solução do problema. Por exemplo, a regra da impenhorabilidade de rendas até 50 salários mínimos[2] e de investimentos até 40 salários mínimos[3], criada para proteger o patrimônio mínimo do cidadão, é facilmente distorcida para proteger devedores com alto poder aquisitivo e, se aplicada de forma cega e indistinta, acaba blindando totalmente a renda da maior parte da população, pois são poucos os que ganham mais do que 50 salários mínimos no Brasil. Com efeito, segundo dados do IBGE, a renda mensal média atual do brasileiro é de R$3.488,00[4].
Logo, esses dispositivos poderiam ser alterados para permitir pelo menos a penhora de um percentual das rendas do devedor de modo a preservar sua dignidade e mínimo existencial mas, ao mesmo tempo, viabilizar o pagamento de suas dívidas. É fato que a maioria das pessoas só tem a sua própria renda para pagar suas despesas e, se essa renda fica integralmente blindada, na prática essas pessoas ficariam imunes de terem que pagar suas dívidas, o que seria um contrassenso com consequências desastrosas para o mercado de crédito do país.
A morosidade, ineficácia e imprevisibilidade da Justiça geram insegurança, desestimulam investimentos, prejudicam o ambiente de negócios e, no limite, minam a própria essência do Estado de Direito. É necessária uma Justiça que não apenas declare o direito, mas que o concretize de forma rápida e efetiva. E, aliás, que faça isso com prioridade em favor dos cidadãos que dela necessitam, em vez de sempre priorizar o próprio Estado que, atualmente, é o principal “cliente” da Justiça.
O Estado, por sinal, ao cobrar dívidas fiscais e tributárias, possui uma série de privilégios que o credor comum não tem, sendo isso atribuído ao “interesse público” superior do Estado receber seus créditos. Mas não é também do máximo interesse da coletividade, composta por todos nós, que o cidadão receba o que é seu? E que o receba o mais rapidamente possível? É como disse Rui Barbosa: “justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”[5]. Por isso, é necessária também uma reforma do sistema de privilégios dos créditos e da forma como é realizado o concurso de credores[6].
A título de reflexão, é possível se inspirar e aproveitar, respeitando as peculiaridades do sistema brasileiro, elementos que funcionam em outros países e demonstram maior efetividade na fase executória. Nos Estados Unidos, por exemplo, o sistema de execução de sentenças confere uma autonomia e agilidade notáveis ao credor. Lá, o advogado do credor, considerado um "oficial do tribunal" (officer of the court), pode emitir diretamente intimações (subpoenas) para obter um vasto leque de informações financeiras e patrimoniais do devedor sob juramento, e pode até mesmo requerer que o devedor preencha um detalhado formulário sobre todo o seu patrimônio (Fact Information Sheet), sob pena de poder até ser preso por desacato (contempt of court) em caso de recusa[7]. Evidentemente, qualquer adaptação de tais mecanismos ao contexto nacional deveria respeitar os princípios constitucionais e as tradições de nosso sistema de direito codificado, buscando inspiração sem importação acrítica de institutos estrangeiros.
No Brasil , em contraste, a obtenção de informações e a emissão de ordens similares dependem invariavelmente da análise e autorização do juiz em cada pequena etapa, criando um abismo de agilidade e transferindo para o Estado uma investigação que no modelo americano é conduzida de forma muito mais eficaz pelo próprio credor e seus advogados.
A ADVOCACIA COMO PARTE ESSENCIAL DA SOLUÇÃO DO PROBLEMA
É bem verdade que nos últimos anos houve avanços importantes, mas o Judiciário brasileiro continua enfrentando sérios gargalos que impactam diretamente a celeridade e a efetividade da Justiça.
A tecnologia, nesse contexto, é a grande aliada. Ao trabalharem com sistemas de automação de documentos, plataformas de gestão de processos e inteligência artificial para análise de dados, os profissionais se libertam do trabalho repetitivo e burocrático. A digitalização da prática jurídica não apenas melhora a eficiência, mas, fundamentalmente, libera o capital intelectual do advogado para que ele se dedique a tarefas mais delicadas e complexas, como a elaboração de teses, a estratégia investigativa e o atendimento diligente a clientes em situações intrincadas.
CONCLUSÃO
Em última análise, a jornada de um processo judicial não pode terminar com uma sentença emoldurada na parede. A sensação de "ganhar, mas não levar" corrói a confiança do cidadão nas instituições e desestimula o ambiente de negócios, deixando um rastro de insegurança jurídica e frustração.
Ainda que a própria jurisprudência já ensaie respostas a esse cenário, buscando alternativas para garantir a efetividade das decisões, a solução definitiva para este impasse exige uma ação em duas frentes interdependentes: uma reforma estrutural que modernize e reequilibre as regras do jogo, conferindo ao credor ferramentas mais eficazes sem desproteger a dignidade do devedor; e uma revolução na prática da advocacia, que deve assumir seu papel de protagonista na investigação e na satisfação do crédito.
Superar a inefetividade da Justiça é o grande desafio de nossa geração de profissionais do Direito. É uma tarefa que nos convoca a sermos mais do que operadores da lei, mas verdadeiros arquitetos de um sistema onde a palavra “justiça” seja, enfim, sinônimo de “resultado”.
*Dr. Rommel Andriotti é advogado e sócio fundador do escritório Rommel Andriotti Advogados Associados. Atua como professor de Direito Civil e Processo Civil na Universidade Presbiteriana Mackenzie e também na Escola Paulista de Direito (EPD). É mestre em Direito (concentração em processo civil) pela PUC/SP (2020). É também mestre em Direito (concentração em Direito Civil) pela FADISP (2020). Possui pós-graduação lato sensu em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito e é bacharel em Direito pelas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU, 2015).
[1] Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 47. Coord.: Rubens Limongi França. São Paulo/SP: Saraiva, 1978, p. 77.
[2] Prevista no Código de Processo Civil da seguinte forma: “Art. 833. São impenhoráveis: [...] IV - os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2º. [...]. § 2º O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art. 528, § 8º , e no art. 529, § 3º .
[3] Prevista no Código de Processo Civil da seguinte forma: “Art. 833. São impenhoráveis: [...] X - a quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta) salários-mínimos”. O Superior Tribunal de Justiça estende esse dispositivo para abranger não apenas poupanças, mas também valores depositados em conta corrente, fundos de investimento, aplicações financeiras em geral e até papel moeda. Ver, nesse sentido, o seguinte julgado exemplo, dentre outros tantos: STJ - AgInt no AgInt no AREsp: 1785985 SP 2020/0291740-4, Relator.: Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Data de Julgamento: 21/02/2022, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 25/02/2022, disponível em:https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/1395159557 – acesso em: 2 out. 2025.
[4] “O rendimento médio mensal real habitualmente recebido em todos os trabalhos pelas pessoas ocupadas foi estimado em R$ 3 488 no trimestre de junho a agosto de 2025”, cfr. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: trimestre móvel: jun./ago. 2025. Rio de Janeiro: IBGE, 2025. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/3086/pnacm_2025_ago.pdf . Acesso em: 02 out. 2025.
[5] BARBOSA, Rui. Oração aos moços. [s.l.: s.n.], 1949, versão digital e-pub (Kindle), pos. 520.
[6] Em termos simples, imagine que uma pessoa ou empresa deve para várias pessoas ao mesmo tempo, mas não tem dinheiro para pagar todas. Privilégios dos créditos é a ordem de preferência que a lei cria para o pagamento (ex: dívidas fiscais são pagas antes de dívidas com fornecedores). Concurso de credores é o procedimento que reúne todos os credores para organizar essa fila e dividir o patrimônio que o devedor ainda possui.
[7] O sistema judicial americano é regido primariamente pela legislação estadual, havendo significativas variações entre os 50 estados quanto aos procedimentos executivos, limites de impenhorabilidade e prerrogativas dos credores. As práticas aqui descritas refletem o modelo predominante na maioria dos estados, especialmente aqueles com tradição de common law, mas podem não se aplicar integralmente a todas as jurisdições americanas. A referência serve como inspiração para possíveis adaptações ao contexto jurídico brasileiro, respeitadas as peculiaridades de nosso sistema de direito codificado.



